1º capítulo

Capítulo 1 - Além

- Tem dias que finjo não ver nada para doer menos o que sinto. Olho para o céu e vejo apenas um lençol negro cobrindo a minha cabeça. Percebo que as estrelas são, no máximo, buracos para a mansão de Deus. Ele brinca conosco, nos deixa nesse mundo de lençóis furados e fica no seu confortável trono, observando este mundo pobre e sujo. A cada dia que passa, finjo ouvir vozes alheias para que, de alguma forma, sinta a companhia de alguém. Não sei o que é conversar com pessoas há muito tempo. No início, foi complicado, mas agora já até me acostumei. Não estar próximo de ninguém evita a criação de laços inúteis, por isso tenho preferido a solidão. Descobri que ela me cai muito bem. Preciso lidar apenas comigo mesmo. Percebi também que estar longe das pessoas nos faz sofrer menos, ficamos menos frustrados, menos decepcionados... Tenho em mente que o futuro será melhor sem as pessoas, será melhor sem rostos conhecidos.
            Aliás, não sei bem se consigo reconhecer algum outro rosto. Desde quando cai aqui, não sei o que é conviver. Aprendi, pelo menos, a sobreviver. E sobrevivendo, tenho a nítida impressão de que o mundo não precisa de mim. E ninguém, nem Deus ou um chinês qualquer, irá se importar com uma história como a minha. Afinal, existem milhares de histórias parecidas no universo, não há porque alguém se importar com uma, tão insignificante quanto as outras. Que se dane, se a minha acabar cedo demais. Só eu verei o ponto final de um conto que nem deveria ter começado.
            Finjo me alegrar observando o horizonte, finjo acreditar que as coisas vão melhorar e que a cada fim de ano os sonhos serão realizados. Expectativas podres e pobres, sem sentido de serem pensadas. Não há motivo de fazer escolhas, planos, se o futuro será tão negro quanto este céu que vejo. Este futuro é uma mistura da frustrante esperança, de cor fraca, de linha frágil, que não segura uma única sutura. É “pointless” como diria um amigo norte-americano. Ele tem toda razão, não há razão em pensar algo que ainda não aconteceu. Tenho pena de quem faz planejamentos de vida, se no fundo, todos sabem que só vivemos para morrer, como formigas numa pequena caixa de vidro, como peixes em aquários.
            Nunca veremos o oceano, Deus! Seremos sempre aprisionados nessa Terra insólita e cheia de vermes como os seres humanos, que não pagam o que devem e sujam mais e mais o mundo, que Você criou. Se amasse este mundo mesmo, não teria deixado as coisas como estão. Depois de andar, tenho certeza que nessa Terra do sol, vi apenas o Diabo e não Tua face.
            Se eu tivesse que dizer realmente uma coisa, diria apenas... “Estou sozinho sim, ouço vozes que estão dentro de mim por opção. Elas me entendem. Vivemos em completa sintonia. Sei que elas sou eu, e eu sou elas. Vivemos em paz e sabemos o que fazer para nos manter entretidos. Amo ser quem sou e odeio estar com outros. Os seres humanos fedem.”
            Já estou aqui há três meses e meus “ditos” amigos se foram. Disseram que tinham encontrado a saída dessa floresta macabra, mas pelo visto, foram apenas visitados pelo demônio deste lugar. Um lugar que assustaria até o mais corajoso dos homens.

LaBiRiNtHo

            A floresta escura é um cenário clássico de filmes de terror, mas mesmo sendo um ambiente conhecido, assusta qualquer pessoa que por ela caminha. Glauber de Andrade, um homem na casa dos 30 anos anda sozinho, ouvindo suas vozes interiores, seguindo um caminho tortuoso, que até ele desconhece. Seu olhar cansado e seu semblante pálido denunciam um passado remoto de muito sofrimento e dor. Seu caminhar é vagaroso e, em alguns momentos, até tropeça numa raiz ou outra saliente de árvore.
            Glauber observa o seu redor e reconhece olhos na escuridão. Os sons da floresta fazem bagunça na sua cabeça, levando a sua mente ao último círculo do inferno. Já não teme mais por sua sanidade, mas por sua vida. Apenas necessita sobreviver.
            - O que você quer fazer? – disse uma das vozes ao seu redor.
            - Não sei. Quero apenas encontrar o meu lugar – respondeu ele.
            - E a que lugar você pertence? – disse outra voz.
            - Eu não tenho um lugar que pertenço. Tenho que descobrir ainda o meu real lar.
            - A melhor forma de descobrir é atravessar essa floresta escura. Sob o véu da escuridão, há as respostas que tanto procuras.
            - Não há resposta nenhuma aqui. Apenas dor – argumentou outra voz.
            - Parem de se contradizer. Se vocês não me dão respostas, como posso prosseguir?
            - Você tem que fazer as perguntas certas. Não se diz o caminho correto sem saber aonde se quer chegar. Glauber, você precisa saber quem é primeiro.
            - Vocês têm ideia de quem sou?
            - Sim, você é o santo guerreiro. O guerreiro que pode nos deixar, caso não se encontre. Aquele que pode se perder num labirinto de emoções e fingir a própria morte.
            - Como fingiria a minha morte para mim mesmo?
            - Fingir a própria morte é morrer para o mundo.
            - Eu morri para o mundo?
            - O santo guerreiro não pode morrer dessa forma. Uma maneira fingida de partir. Apenas covardes morrem assim. Você é um covarde, nobre santo guerreiro?
            - Não! – gritou Glauber – Não sou um covarde, dragão!
            - Dragão? – indagou uma das vozes.
            - Sim, dragões são as vozes que me dizem o que fazer e me julgam.
            - Então somos dragões – respondeu outra voz – E o que, nós dragões fazemos?
            - Vocês me ludibriam. Me fazem perder nessa floresta negra e do mal. Sou um reles mortal, querendo se encontrar.
            - Você é um santo guerreiro incompreendido ou uma invenção de si mesmo?
            - Não sou invenção. Sou a contra-invenção.
            - O que é contra-invenção?
            - Contra-inventar é um verbo que nem existe. Sou uma desconstrução. Me desconstruo para me entender. Assim poderei me reinventar e ser algo novo. Posso ser guerreiro, mas santo não. Tento me descobrir, ao me entender aos poucos, sou um mosaico de uma identidade perdida e mal-entendida.
            - Então contra-inventar é destruir? Não compreendemos.
            - Não é destruir. Destruir é acabar com algo de vez. Eu não acabo comigo, apenas remonto os diversos pedaços que formam quem sou.
            - E quem é você?
            - Ainda estou tentando me descobrir.
            - E o que você acha de se descobrir um santo?
            - Já lhes disse que não sou santo, sou apenas um guerreiro comum.
            - Você é um guerreiro sim e um santo para nós.
            - Dragões cheios de maldade, o pouco de sentimento que tenho já é o suficiente para ser considerado santo por vocês.
            - Pode ser. Pode não ser.
            - Deixem-me em paz. Preciso sair daqui. Meus companheiros de carne e osso sumiram, me deixaram, mas mesmo assim, ainda os procurarei. Tenho uma longa jornada para seguir.
            - Iremos contigo.
            - Façam como quiserem.
            Os olhos de Glauber já fatigados pela longa estada de três meses nessa floresta lúgubre, cheia de insetos e doenças, faz dele um ser ainda mais forte. Menos humano, é verdade. No entanto, ele parece estar no caminho certo para viver ou sobreviver nesse ambiente hostil. Seus passos o conduzem a um lago próximo de onde estava.
            Ele molha os pés e bebe um pouco de água. Percebe que há fumaça em um lugar perto. A fumaça preta sube com a força e velocidade de um tornado das trevas. As vozes o mandam seguir em frente, mas ele vai em direção ao fogo.
            Ao chegar no lugar, ele vê uma vila em chamas, um lugar destruído.
            - Deve ter sido obra de um de vocês – disse Glauber aos Dragões que habitam dentro dele.
            - Não fomos nós. Nem sabíamos que existia uma cidade nesse lugar.
            - Bem como disse... Existia... Não existe mais. Tudo está acabado, destruído.
            - Esse lugar irá contra-inventar?
            - Talvez. Se houver alguém e força de vontade para isso.
            - Por que você não contra-inventa esta cidade?
            - Não tenho competência para tal. Sou um cineasta e não um engenheiro.
            - Para que os cineastas existem, se não constroem coisas?
            - Construímos sonhos.
            - Mas você não sonha. Você é um cineasta ruim?
            - Não, sou um cineasta diferente. Percebo o transe pelo qual a Terra passa e tento explicá-lo. Só que não me contra-inventei ainda o suficiente para explicar algo que nem eu mesmo consigo compreender.
            - E quando irá construir o seu primeiro sonho?
            - Quando eu souber do que os sonhos são feitos.
            Glauber percebe que não há nada naquele lugar que lhe seja útil. Ele prefere sair de perto dali e seguir em frente, mesmo que não saiba exatamente que lugar deva encontrar. Ao sair dali e caminhar por quase uma hora, ele vê uma pessoa caída no chão, uma mulher bonita, fraca e com o corpo cheio de hematomas e machucados.
            - O que você fará com ela? – perguntou uma das vozes.
            - Irei levá-la comigo.
            - Levá-la para onde? Não há lugar que seja seu nesse mundo.
            - Cale-se, dragão. Não quero a companhia dessa mulher. Só quero saber algumas coisas.
            - Que coisas?
            - Não importa a vocês.
            - Mas nós nos importamos com você.
            Glauber pega a mulher no colo com cuidado e a leva até um lugar próximo do lago onde estava. Ele a deita sobre uma pedra, retira sua roupa e a lava com a água da beira. Pelo que ele conseguiu ver, a mulher tinha apenas escoriações superficiais, porém, ele decide esperar que ela acorde para que saiba realmente o que está passando com ela.

*****

            O dia nasce denotando felicidade, devido ao céu multicolorido e forte sol. Assim que o primeiro raio de sol iluminou o rosto da mulher, ela acordou. Abrindo os olhos lentamente, olhou para o Glauber e assustou-se.
            - Onde estou? Cadê minhas roupas?
            - Calma.
            - Ricardo! O que você fez com o Ricardo?
            - Calma. Não há nenhum Ricardo aqui. Qual é o seu nome?
            - Você é um deles, não é? Você é um dos homens do Frank.
            - Frank? Quem é esse homem?
            - Eu não confio em você.
            - Não quero que confie em mim. Só quero que me diga seu nome.
            - Meu nome? Meu nome é... Katherine.
            - Nome estranho. Prefiro nomes brasileiros. Essa gente que coloca nomes estrangeiros nos filhos não podem ser levadas a sério.
            - O que você quer comigo? É só falar mal do meu nome?
            - Não. Quero saber como sair daqui.
            - Sair? Eu tentei sair daqui, mas não sei o que aconteceu. Lembro somente de ter caído do avião, quando tentava escapar desse lugar, mas foi em vão – Katherine olha o pescoço de seu novo companheiro e percebe que não há colar como aquele que temia tanto quando usava – Você não tem um colar.
            - Do que você está falando? Que colar, que avião? Só quero saber que lugar é esse. Eu preciso saber.
            - Você realmente não sabe de nada, não é? Eu preciso saber onde está o avião que caiu comigo e o Ricardo, meu amigo.
            - Você não me é útil. Preciso encontrar algumas pessoas.
            - Que pessoas?
            - Algumas.
Glauber sai de perto dela e segue andando sem se despedir.
            - Ei! Posso ir com você? Preciso de ajuda.
            - Quem não precisa?
Katherine pega sua roupa, mesmo molhada e segue atrás de Glauber.
            - Qual é o seu nome? – perguntou a esbaforida Katherine.
            - Glauber de Andrade.
            - Então, você nunca esteve preso, não é?
            - Não sei do que está falando.
            - Que bom que não sabe.
            - Você está aqui há quanto tempo?
            - Sinceramente não sei. Sei só que tempo aqui nesse lugar não é um fator importante.
            - Não é?
            - Para que saber a hora, quando não se tem nada marcado ou com quem conversar?
            - Você está sozinho?
            - De certa forma não.
            - Por quê?
            - Não vem ao caso.
            - Conte para ela, guerreiro. Diga que nós existimos. Vamos, diga. Diga. Diga. Diga. Diga. Diga. Diga...
            - Cale a boca! – gritou Glauber com ódio.
            Katherine se manteve muda, com medo da reação do seu novo companheiro de caminhada.
            - Perdão. – Glauber percebe que se exaltou sem poder – Não foi minha intenção.
            - Ok. Sem problemas.
            Ambos permanecem em silêncio. Até que Katherine o quebra.
            - Você sabe o que...
            A atenção dos dois é tirada por um avião de pequeno porte que cai em chamas no lago onde estavam.
            - Acho que devemos ir lá para vermos o que acontece com esse avião. Você sabe o que aconteceu com o seu, guerreiro – disse uma das vozes.
            - Sei sim. E sei o que acontecerá com seus tripulantes – pensou ele.
            Glauber anda em direção ao lugar onde caiu o avião, sem falar com Katherine.
            - Tô vendo que falar para onde vai, será algo impossível aqui.

*****

            Enquanto o avião afundava, Glauber entra na água e consegue resgatar uma mulher branca, de cabelos loiros, beirando a casa dos 30. Ela estava chorando e agradecendo.
            - Obrigada por me ajudar. Muito obrigada mesmo.
            Ao colocá-la na margem do lago, ele volta para salvar o piloto e possivelmente mais um homem que estava junto da mulher naquele avião.
            - Nãoooooooo! – gritou ela.
            - Calma. Ele vai ajudar a pessoa que está lá. Tomara que ninguém se afogue – disse Katherine tentando acalmá-la.
            - Esse é o problema. Ele não pode salvar ninguém. O homem que está lá foi quem me sequestrou e me trouxe para cá.
            - O quê? Provavelmente eles são capangas do Frank e não sabem ainda o que aconteceu.
            - Do que você está falando?
            - Tinha mais alguma pessoa sequestrada com você?
            - Sim. Eu, uma mulher oriental e um homem negro.
            - Meu Deus.